sábado, 28 de março de 2015

Vagando

Inquieta, vasculho a noite. Estendo meus tentáculos para além das paredes. Procuro. Não acho nada. Respiro. Minha coluna dói. O que estou fazendo aqui? Olho em volta. Não quero notar nada, mas me obrigo. Muitas coisas estão fora do lugar. E eu faço A Pergunta: como foi que eu cheguei até aqui? Eu não planejei isso. Esse é o problema: eu não planejei. Preciso planejar. Preciso conduzir.

Estou cansada. Fico resistindo ao sono. Testando forças com ele. Não é um bom jogo. Boa noite.

By Urban Fox

WHAT DOES THE FOX SAY?

Não há mais ninguém aqui. As vozes calaram-se. Só eu e minha imaginação. Eu a vejo surgir desfocada, como que vindo do horizonte, o calor sobe do chão. Meio-dia. Miragem. Coço os olhos. Não pode ser! ela nunca sairia da toca ao meio-dia. Mas saiu. Só que era meia-noite e eu havia me enganado. Não era ela ainda. Onde ela estaria dormindo agora?

Devo ter bebido muito café. Deve ser alguma espécie de alucinação. A pequenina raposa vermelha me encara fixamente enquanto eu escrevo. Ela sussurra coisas, sou encantada, ela diz. Onde você estava ontem à noite? Eu preciso que você escreva sobre tocas, esconderijos, e espreitas. Sem espreita eu não chegaria até aqui. Uma raposa urbana precisa de muita arte para sobreviver.
Ela pisca seus olhos amarelos. Até poderia ser um cão de uma raça exótica, mas não é. Ela acomoda sua cauda envolta do corpo pequenino que parece diminuir com o gesto. Ela continua falando. Sabe o que tirei no I-Ching ontem? “Três raposas são capturadas nos campos. Recebe uma flecha amarela.” Sei que não deveria falar com ela, mas arrisquei perguntar: e o que isso significa? Não posso dizer, ela respondeu, eu era a quarta raposa. Tire suas conclusões.

Quem era as outras três? Elas eram e eu estou aqui. Tenho sono, meu corpo dói, e eu não vejo nada além do meu umbigo. Por mim todo o mundo poderia se apagar agora. Piscando. O que se faz quando se está cansada e o caminho está no meio? Você se materializa e se mistura à multidão, com sorte passa despercebida. Eles pensam que sua cauda é um rabo-de-cavalo e que você bem poderia ser alguém. É como o Diabo vestido de gente tentando esconder os cascos.

Os dias estão todos cegos, sabia? Seus olhos secaram quando pariram o mar. Eu roubei o fogo de Prometeu e o transformei em pelo. Fulgurante e invisível. Não é engraçado? E assim ela prosseguiu a noite toda e por vários dias. E para aqueles que perguntaram, é isso o que a raposa fala. Ah, é claro que ela também cantou aquela música absurda.


By Blue Fox – A Sonhadora


quarta-feira, 18 de março de 2015

ESPREITA S/A

Espreitar a si mesmo. Observar-se em cada ato e, ainda assim, vivê-lo. Focar dentro e estar fora ao mesmo tempo. Tomar posse plena do corpo: célula a célula. Tomar posse plena da mente: pensamento por pensamento.

Arrisca-se perder a sanidade. É isso mesmo o que queremos; o enlouquecimento consciente, a loucura controlada. Se reconhecermos que já estamos mortos, porque deveríamos nos preocupar em enlouquecer? Propomos que nos ocupemos disso. Afinal, o que é mais insano do que o cotidiano? E isso você aceita como realidade. E isso você aceita como normal. Será que você já não está louco?

Enlouquecendo controladamente talvez você esteja, de fato, recobrando a sua sanidade.

Tudo no mundo quer nos engolir, inclusive nosso próprio "eu", mas você já deve saber que é o seu pior inimigo e o principal. E tudo no mundo conspira para que seu "eu" te domine, te absorva tão completamente até que aquilo que você deveria ser - e em certa instância já é - esteja subjugado, amedrontado, perdido e desconectado. Você não escuta a sua própria voz. As vozes na sua cabeça, aquelas que se passam por seu pensamento, já não são suas. A sua mente é dissociada da sua alma. É esse ser alienígena que te domina, daí tanta paranoia sobre implantes  e chips extra-terrestres. As pessoas sentem o que está acontecendo e o reveste de uma monstruosidade que vem de fora: é um outro ser que me invade contra a minha vontade.

Na verdade, você é o maior cúmplice daquilo que te devora. Você se permite ficar adormecido, se permite ficar inconsciente. A inconsciência é doce e acolhedora, como o morcego que lambe a sua ferida, anestesiando-a, enquanto suga o seu sangue.

Nada dito aqui é novo. Nada aqui foi pensado agora por nós. Muitos vieram antes e muitos virão. Somos gotas pingando lentamente num rochedo, enquanto o resto do mar balança em adormecimento. Mas também somos o rochedo que resiste a insistência da água. Resistimos à dissolução, resistimos a nos transformar em areia, nos iludindo com a solidez da pedra.

By Urban Fox